Quem vê a professora Miriam Regina Machado narrando sua trajetória de maneira tão articulada e com bom humor, não imagina o árduo caminho percorrido pela escritora: das terapias de eletrochoque às sessões de autógrafo da obra recentemente publicada.
A alfabetizadora brasiliense, que lecionou no ensino fundamental em escolas rurais, teve sua primeira experiência em instituições manicomiais, após a perda da mãe, aos 17 anos, quando saiu caminhando pela BR-060, em Brasília, e só parou em Paragominas, município do estado do Pará.
Foi o início de uma história permeada pelos transtornos, internações e pelo estigma que acompanha a doença mental. “Na primeira internação me vi abandonada em um depósito humano, não havia interesse na reabilitação do paciente, apenas a intenção de segregar”, denuncia.
No entanto, o transtorno bipolar diagnosticado, anos mais tarde, não impediu que a professora seguisse normalmente sua vida, embora com limitações. Ela se casou, teve três filhos, fez concurso, foi aprovada e relembra com nostalgia a época em que dava aula.
“Às vezes, me espanto com alguns relatos sobre a escola nos dias atuais. Muitos alunos não respeitam os professores. Eu amava meus alunos e, ainda hoje, alguns vão até a minha casa para mostrar o anel de formatura. É muito gratificante ter contribuído para essas histórias”, emociona-se.
A VIDA É A ARTE DO ENCONTRO
Após sucessivas internações, Miriam Regina foi conduzida ao Hospital-Dia, da unidade psiquiátrica taguatinguense Hospital São Vicente de Paulo. A partir dessa convivência, a escritora foi encaminhada ao Centro de Atenção Psicossocial de Taguatinga (CAPS) e conheceu o professor universitário e psicólogo, Daniel Goulart, que na época, era mestrando em Educação, na Universidade de Brasília.
Sua pesquisa sobre as práticas educativas e de atenção à saúde, enquanto processos que enfatizam a qualidade do desenvolvimento humano, teve continuidade no doutorado e possibilitou uma parceria que extrapolou o convívio nos CAPS.
Os encontros regulares por mais de dois anos fortaleceram a amizade e originaram o livro que, desde o início, foi idealizado com um propósito educativo. “Foi um trabalho conjunto no qual eu falava e o dr. Daniel, pacientemente, digitava todas as crônicas. Acreditava que minha experiência poderia ajudar outras pessoas a não vivenciarem o que passei”, relembra a professora.
“Publicar o livro é uma forma de valorizar a riqueza da história da Miriam. As pessoas que têm problemas com a saúde mental são estigmatizadas e marginalizadas, mas têm histórias que merecem ser contadas.
Além disso, a obra conecta Miriam à experiência de outras pessoas e pode diminuir as barreiras simbólicas, promovendo mais trocas. Possibilita também que ela assuma o lugar que ela merece, o lugar de protagonista, de alguém que tem o que dizer”, ressalta Goulart.
NOVAS PRÁTICAS EM SAÚDE MENTAL
O título do livro definido pela autora enfatiza que a alma não pode ser reduzida a um diagnóstico, uma vez que algumas instituições tratam as pessoas como meros usuários. A obra que também revela o avanço nas abordagens da saúde mental está tendo uma ótima recepção o que pode render a possibilidade de nova tiragem.
“Por muito tempo a pessoa com problema de saúde mental era um ser sem voz e sem nenhuma capacidade. O tratamento era visto apenas como algo que levasse à cura, sem considerar o processo de cidadania envolvido ou a necessidade de ampliar os espaços de socialização, de convivência entre sociedade e serviço de saúde mental ou entre usuários”, explica o professor universitário.
Das canções de Chico Buarque às travessuras da cachorra Hannah, da frustração com as crises às reminiscências da vida como professora, a obra retrata momentos de pura poesia. “Há algo transcendental em todos nós. Não adianta ficar se lamuriando. A vida é feita para ser vivida”, resume a professora com a convicção de quem ainda tem muito a conquistar.
Foto e texto: Secretaria de Estado de Educação - DF